domingo, 25 de setembro de 2016

Intertextualidade entre o trovadorismo galaico-português e a literatura brasileira contemporânea

“A repetição de um texto por outro, de um fragmento em um texto, a colagem, a alusão, a paródia, nunca é inocente.” (CARVALHAL, 1992 apud ALGERI, SIBIN, 2007)

A literatura comparada nos leva à busca entre semelhanças e diferenças e ao diálogo presente entre os textos, ainda que tenham sido escritos em épocas e contextos diferentes.

Retomando postagem anterior, lembramos que o Trovadorismo é o movimento literário que teve início entre 1198(ou 1189), com a Cantiga da Ribeirinha de Paio Soares de Taveirós e possuía elementos marcantes em sua estética e foi enriquecido por influências árabes, francesas e alemãs, resultantes, seja por proximidade geográfica, seja por invasões frequentes na península ibérica.

A poesia trovadoresca se apresenta em dois gêneros essenciais: o liricoamoroso e o satírico, que era apresentada no idioma galego-português – devido à união então existente entre Portucal e Galizia – para uma plateia e com acompanhamento musical, em especial de instrumentos de corda. O refrão reforçava a presença do coro e seu caráter de transmissão oral, com apresentações públicas – não era comum a existência de um leitor solitário.

A separação entre música e poesia só ocorreu mais tarde. Sendo assim, ainda que o gênero trovadoresco esteja envelhecido para o gosto do leitor moderno, continua influenciando tanto a literatura quanto a música contemporâneas. Em cada um dos tipos mais comuns de cantigas, consegue-se identificar elementos (sejam técnicos ou temáticos) que remetem obras contemporâneas às cantigas medievais. Vejamos alguns exemplos:

Cantiga de amor: o eu-lírico masculino canta o amor idealizado e sofrido, torturante. Não há intenção de concretizá-lo, uma vez que a “senhor” amada geralmente é casada, membro da aristocracia, inatingível, acentuando a coita (sofrimento por amor). O amor impossível é tema recorrente na literatura e na música.  Como exemplo, temos este fragmento da música Amor Sublime, do grupo Legião Urbana (ALGERI, SIBIN, 2007).

Eu sou apenas alguém
Ou até mesmo ninguém
Talvez alguém invisível
Que a admira a distancia
Sem a menor esperança
(...)
Você é o motivo
Do meu amanhecer
E a minha angústia
Ao anoitecer
(...)
Dono de um amor sublime
Mas culpado por querê-la
Como quem a olha na vitrine
Mas jamais poderá tê-la
(...)
Eu sei de todas as suas tristezas
E alegrias
Mas você nada sabe
(...)
Nem sequer que eu existo.

Cantiga de amigo: o eu-lírico feminino canta o amor real, consumado, muitas vezes tendo como final o abandono da mulher pelo homem amado. Observe a letra da música “Onde andarás” interpretada por Joanna. Além do amor abandonado, ele destaca elementos do ambiente e da natureza, como a cantiga de amigo fazia.

Onde andarás nesta tarde vazia
Tão clara e sem fim
Enquanto o mar bate azul em Ipanema
Em que bar, em que cinema te esqueces de mim.
(...)
Eu sei, meu endereço apagaste do teu coração,
(...)
Não serve pra nada a escada, o elevador,
Já não serve pra nada a janela
A cortina amarela, perdi meu amor
E é por isso que eu saio pra rua
Sem saber pra que
Na esperança talvez de que o acaso
Por mero descaso me leve a você.
(...)
(Caetano Veloso e Ferreira Goulart)

Este sofrimento feminino era escrito por trovadores homens e ainda hoje encontramos esta inversão, como em músicas de Chico Buarque (“Atrás da Porta”), Adriana Calcanhoto (“Devolva-me”) e Gal Costa (“Falando de Amor”).

Cantigas de escárnio e maldizer: apresentam o rude espírito medieval como sátira da sociedade da época. As de escárnio faziam uma crítica encoberta, com duplo sentido, enquanto que as de maldizer eram diretas e claras, nomeando o “homenageado”.
Um exemplo desta interface da música contemporânea com o trovadorismo (no sentido das músicas de duplo sentido que são uma crítica à sociedade da época) é a música “Apesar de Você” (clique aqui para assistir ao vídeo), de Chico Buarque, composta na década de 1970 como um crítica ao governo militar, em especial ao presidente Médici – encoberta, para uns; clara e direta, para outros.

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
(...)

A linguagem utilizada – muitas vezes grosseira, com termos chulos, às vezes pornográficos em versos que traziam retratos de uma sociedade – continua sendo empregada por autores contemporâneos, em especial em composições brasileiras que embalam bailes funk e de gêneros correlatos.

REFERÊNCIAS


ALGERI, Nelvi Malokowsky, SIBIN, Elizabete Arcalá. A poesia trovadoresca e suas relações com a literatura de cordel e a música contemporânea. 2007. 20f. Monografia (Especialização em Letras) – Faculdade de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Disponível em: <http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/producoes_pde/artigo_nelvi_malokowsky.pdf>Acesso em: 25 set 2016

Análise da cantiga de amigo de refrão do trovador Pero da Ponte


- Ai madr', o que me namorou
foi-se noutro dia daqui

e, por Deus, que faremos i?

Ca namorada me leixou.

5       - Filha, fazed'end'o melhor:
       pois vos seu amor enganou,
       que o engane voss'amor.
  

- Ca me nom sei [i] conselhar,
mia madre, se Deus mi perdom.
10- Dized', ai filha, por que nom?
Quero-me vo-lo eu mostrar:
       filha, fazed'end'o melhor:
       pois vos seu amor enganou,
       que o engane voss'amor.
  
15Que o recebades mui bem,
filha, quand'ante vós veer,

todo quanto vos disser

outorgade-lho e, por en,
       filha, fazed'end'o melhor:
20       pois vos seu amor enganou,
       que o engane voss'amor.

Cantiga de amigo de refrão dialogada com 3 cobras singulares de 7 palavras. 
Semanticamente, tem-se como tema a vingança de uma moça contra o amigo que a abandonou. É possível observar as marcas de diálogo com sua mãe, como a presença das aspas e o travessão. O conselho de sua mãe está presente ao final de cada cobra, no refrão. Ela aconselha a filha a enganá-lo como ele a enganou. 

REFERÊNCIAS 

Cantigas Medievais Galego-Porguesas. Sobre as Cantigas. Disponível em: < http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp >. Acesso em 25 set 2016.

FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Aulas ministradas entre os dias 29 de agosto e 20 de setembro de 2016, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. 

Alguns conceitos a serem esclarecidos

Alguns termos utilizados nos textos e nas postagens não são mais utilizados no português brasileiro ou são termos específicos para a análise de cantigas trovadorescas galego-portuguesas, Por este motivo, compusemos um breve glossário para facilitar o entendimento e para servir de referência de consulta. Este mesmo glossário teve como referências os textos apresentados ao final desta portagem.


Cobras – estrofes
  • Cobras singulares: estrofes com séries de rimas diferentes
  • Cobras uníssonas: estrofes com única série de rimas que se repetem em todas as estrofes
  • Cobras doblas: estrofes com séries de rimas que se repetem a cada duas estrofes

Quanto ao refrão:
  •  Cantiga de refrão: cantiga com estribilho ou refrão
  • Cantiga de refrão paralelística: repetição de versos em sequência determinada com refrão invariável
  • Cantiga de maestria: cantiga sem refrão

Palavras – versos

Finda – remate de uma cantiga, constituído por um, dois ou três versos finais (em casos raros, quatro). As cantigas podem ainda ter duas ou mais findas.
Ateúda – cantiga que não sofre interrupção sintática entre as estrofes, e onde o sentido se liga do primeiro ao último verso.
Ateúda atá finda – cantiga ateúda até à finda (ou seja, onde o processo de ligação estrófica se estende à finda).


Dobre – processo pelo qual se repetem palavras na mesma estrofe, em pontos que são fixos em todas as estrofes (ou seja, exemplificando: se na 1ª estrofe se repete a mesma palavra em dois pontos, nas estrofes seguintes deverá repetir-se uma outra palavra na mesma posição).

Mozdbre – processo semelhante ao dobre, mas com variação na flexão da palavra (exemplo: amar/amei).

Este glossário é preliminar e pode ser completado com pesquisas mais aprofundadas pelo leitor que se sentir motivado para conhecer mais sobre a terminologia então adotada.

REFERÊNCIA:

LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FSCH/NOVA. Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp#7>. Acesso em 25 set 2016.

Cantigas satíricas como uma reação às imposições morais da Igreja Católica

No século XIII veria-se várias ações por parte da Igreja Católica para reprimir as práticas ditas pagãs na Península Ibérica. As tentativas de se apagar as festas e rituais dos povos desses locais, festas que eram muitas vezes repletas de erotismo, foram consideravelmente bem sucedidas. Contudo, deixaram reflexos nas artes e cantigas dos trovadores. Esses reflexos podem ser vistos tanto nas cantigas de amigo que frequentemente se opõem ao “amor puro” e “anticarnal” imposto pela igreja, como em algumas sátiras feitas pelos jograis.
As três cantigas que separamos abaixo mostram com bastante evidência uma reação a esses atos purificadores da igreja.


Infelizemente muita poucas canções trovadorescas medievais salvaram-se com suas melodias. Mas, por outro lado, houve várias regravações modernas de cantigas trovadorescas. As letras das músicas a seguir são cantigas de sátira com suas melodias refeitas por Xurxo Romaní. Elas foram envoltas por arranjos de guitarra e um tom de rock moderno.

Tente acompanha-lás com a letra logo abaixo do vídeo.

Abadessa oí dizer - Xurxo Romaní



Abadessa, oí dizer
que érades mui sabedor
de tod'o bem; e, por amor
de Deus, querede-vos doer
de mim, que ogano casei,
que bem vos juro que nom sei
mais que um asno de foder.

Ca me fazem en sabedor
de vós que havedes bom sem
de foder e de tod'o bem;
ensinade-me mais, senhor,
como foda, ca o nom sei,
nem padre nem madre nom hei
que m'ensin'e fic'i pastor.

E se eu ensinado vou
de vós, senhor, deste mester
de foder e foder souber
per vós, que me Deus aparou,
cada que per foder direi
Pater Noster e enmentarei
a alma de quem m'ensinou.

E per i podedes gaar,
mia senhor, o reino de Deus,
per ensinar os pobres seus
mais ca por outro jajũar;
e per ensinar a molher
coitada, que a vós veer,
senhor, que nom souber ambrar.

Essa é uma cantiga escrita por Afonso Anes do Cotom, na qual o trovador se diz órfão e inexperiente. Ele roga a uma abadessa, muito sábia no assunto, que ensine as práticas amorosas, para que, assim, ajudando os mais humildes, ela possa ganhar os reinos dos céus.

A un frade dizen escarallado - Xurxo Romaní


A um frade dizem escaralhado,
e faz pecado quem lho vai dizer,
ca, pois el sabe arreitar de foder,
cuid'eu que gaj'é de piss'arreitado;
e pois emprenha estas com que jaz
e faze filhos e filhas assaz,
ante lhe dig'eu bem encaralhado.

Escaralhado nunca eu diria,
mais que traje ante caralho arreite,
ao que tantas molheres de leite
tem, ca lhe parirom três em um dia,
e outras muitas prenhadas que tem;
e atal frade cuid'eu que mui bem
encaralhado per esto seria.

Escaralhado nom pode seer
o que tantas filhas fez em Marinha
e que tem ora outra pastorinha
prenhe, que ora quer encaecer,
e outras muitas molheres que fode;
e atal frade bem cuid'eu que pode
encaralhado per esto seer.

Uma sátira, escrita pelo trovador Fernand'Esquio, sobre um frade que dizem ser impotente (escaralhado), porém engravida todas as mulheres ao redor e faz isso a tal ponto que três dessas mulheres tiveram seus filhos na mesma data. A letra, como é possível notar, é escrita com termos bastantes expressivos.   


A vós dona abadessa - Xurxo Romaní


A vós, Dona abadessa,
de mim, Dom Fernand'Esquio,
estas doas vos envio,
porque sei que sodes essa
dona que as merecedes:
quatro caralhos franceses
e dous aa prioressa.

Pois sodes amiga minha
nom quer'a custa catar,
quero-vos já esto dar
ca nom tenho al tam aginha:
quatro caralhos de mesa
que me deu ũa burguesa,
dous e dous ena bainha.

Mui bem vos semelharám
ca sequer levam cordões
de senhos pares de colhões;
agora vo-los darám:
quatro caralhos asnaes,
enmanguados em coraes
com que calhedes a mam.

Essa também é uma cantiga escrita, como assinado no segundo verso, por Fernand'Esquio. De maneira bem direta e com termos bem crus, ele diz que envia, prestativamente, um objeto para consolar a rotina penitente de uma abadessa não identificada.



Os esforços da igreja para suprimir os amores carnais e o erotismo não foram suficientes, pois o mesmo conteúdo visto nessas cantigas de sátiras ainda pode ser observado em poemas e músicas de séculos posteriores e, inclusive, a essência ainda pode ser encontrada em algumas das músicas da atualidade. 


Referências:


FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Aulas ministradas entre os dias 29 de agosto e 20 de setembro de 2016, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora.

SOARES, Martim; TAVEIRÓS, Paio Soares de. Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FSCH/NOVA. Disponível em <http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=115&pv=sim> Acesso em 24 set 2016.

SARAIVA, Antônio José; Lopes, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto, 1987. 

Um exemplo de cantiga de amor

Vejamos esta cantiga de amor do trovador português João Garcia de Guilhade, que diz que seus olhos ficam cegos de tanto chorar por não ver sua amada e ficam também cegos quando a veem.

Estes meus olhos nunca perderám,
senhor, gram coita, mentr'eu vivo for;

e direi-vos, fremosa mia senhor,

destes meus olhos a coita que ham:
       choram e cegam, quand'alguém nom veem,
       e ora cegam por alguém que veem.

Guisado têm de nunca perder
meus olhos coita e meu coraçom,
e estas coitas, senhor, mĩas som:
mais los meus olhos, por alguém veer,
       choram e cegam, quand'alguém nom veem,
       e ora cegam por alguém que veem.

E nunca já poderei haver bem,
pois que Amor já nom quer nem quer Deus;
mais os cativos destes olhos meus
morrerám sempre por veer alguém:
       choram e cegam, quand'alguém nom veem,
       e ora cegam por alguém que veem.


mentre: enquanto
guisado: preparado
coita: sofrimento
cativo: infeliz

Nesta cantiga temos 3 cobras (estrofes) com 6 palavras (versos). É uma cantiga de refrão e paralelística.
As cantigas de amor tiveram forte influência das cantigas provençais, chamadas também de cansó, que retratava um amor que visa a um tipo idealizado de mulher, uma aspiração sem correspondência.
Veja abaixo uma recriação moderna desta cantiga em vídeo.


Para conhecer mais cantigas acesse o site Cantigas Medievais Galego-Portuguesas. 

Referências:
FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Aulas ministradas entre os dias 29 de agosto e 20 de setembro de 2016, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora.
SARAIVA, Antônio José, Lopes, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto, 1987.
Site:
http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=404&pv=sim, acesso em 25 de setembro de 2016.

As cantigas e algumas peculiaridades

A literatura entre os povos românicos medievais era divulgada pelos trovadores, jograis e segréis como já mencionamos em outra postagem. Esses compositores, recitadores, músicos e cantores circulavam entre os castelos, feiras e aldeias cantando essas poesias que foram reunidas em coletâneas conhecidas por Cancioneiros.  

Essa literatura oral só é firmada na escrita tardiamente quando a realidade era bem diversa, perdendo-se, por exemplo, as notações musicais das cantigas. Esses Cancioneiros não são coleções de poesia nacional, mas reúnem cantigas de diversos autores, trata-se de uma literatura da Península Ibérica em língua galego ou portuguesa.

Figura 1 - Iluminura Cancioneiro da Ajuda (Nobre, jogral com cítola, jogral com harpa)

Entre os três Cancioneiros conhecidos temos:
Cancioneiro da Ajuda: foi provavelmente compilado ou copiado em fins do século XIII, de grande interesse por ser um manuscrito da época dos poetas e colaboradores, sendo valioso pela grafia e por conter iluminuras. Com 310 cantigas, quase todas são de amor.

Cancioneiro da Vaticana: cópias realizadas na Itália no século XVI de uma provável compilação do século XIV. Algumas descobertas recentemente. Com 1205 cantigas separadas em quatro tipos.

Cancioneiro da Biblioteca Nacional: o mais completo com 1647 cantigas separadas em quatro tipos, chamada também de Colloci-Brancutti devido a um colecionador italiano a quem devemos sua preservação.  

Figura 2 - Folio (Nobre, jogral com cítola, rapariga com pandeiro redondo com soalhas exteriores)

Esse último Cancioneiro contém um tratado poético do século XIV conhecido como “A arte de trovar” (escolhido como nome do nosso blog), do qual se perdeu o texto anterior ao capítulo IV, que busca classificar e dar regras para as cantigas. Este tratado faz uma distinção em três gêneros: cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio e maldizer.
Conforme Abdala Júnior, podemos classificar essas cantigas quanto ao assunto e quanto à forma, vejamos:

Cantigas de amigo quanto ao assunto:
- albas: falam do amanhecer
- pastorelas: personagem central é uma pastora
- barcarolas: se referem ao mar ou ao rio
- bailias: há dança ou baile
- romaria: se prendem à peregrinação
- tenções: há diálogo entre a moça e a mãe, a irmã, amiga ou a natureza
 Quanto à forma:
- maestria: não tem refrão
- refrão: possuem refrão
- paralelísticas: que têm paralelismo

Cantigas de amor quanto ao assunto:
- temática pouco variada: enaltecimento da “senhor” (mulher inacessível), o amor provoca a “coita” (sofrimento).
Quanto à forma:
- maestria: sem refrão
- refrão: possuem refrão
- desacordo: apresenta variedade métrica que expressa intranquilidade de espírito

Cantigas satíricas:
- escárnio: utiliza ironia sem dizer a quem se refere
- maldizer: usa linguagem obscena e diz a quem se dirige
- canção de seguir: imita outra cantiga de maneira cômica
- tenção de briga: diálogo entre trovadores em que a resposta de um deve iniciar com a rima do verso anterior
É importante salientar que nas cantigas galego-portuguesas, “cobra” é sinônimo de estrofe e “palavra” é o mesmo que verso.

Referências:
ABDALA JÚNIOR, Benjamim, PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da literatura portuguesa. São Paulo: Ática, 1985.
FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Apostila Trovadorismo Medieval. Faculdade de Letras. UFJF. Juiz de Fora, 2016.
SARAIVA, Antônio José, Lopes, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto, 1987.
Sites:
http://cantigas.fcsh.unl.pt/iluminura.asp?img=A_171_47, acesso em 24 de setembro de 2016.
http://cantigas.fcsh.unl.pt/cancioneiro.asp?imgc=A_197_60&cdcanc=1, acesso em 24 de setembro de 2016.
http://cantigas.fcsh.unl.pt/artedetrovar.aspacesso em 24 de setembro de 2016.


sábado, 24 de setembro de 2016

Uma breve contextualização

No século XII, diversos reinos cristãos independentes estavam presentes na Península Ibérica que abrange hoje os territórios conhecidos como Portugal e Espanha. A independência de Portugal foi conquistada de maneira gradativa após disputas políticas pela hegemonia da região, casamentos por conveniência territorial, lutas militares até se chegar a uma diferenciação dos reinos por suas atividades econômicas.

Figura 1 - Península Ibérica (destaque)

A partir das rivalidades geradas entre os grupos feudais, foram criadas associações populares para acabar com a servidão a outros territórios o que provocou o fortalecimento das forças militares, facilitando assim o processo de independência de Portugal. Por fim, um acordo de paz foi estabelecido entre os reinos de Leão e Castela, mas o título de rei foi concedido pelo papa a Afonso Henriques somente no final do século XII. A luta para consolidar essa independência permaneceu até o final do século XIII no reinado de Afonso III.

Figura 2 - Dom Afonso III

            A estrutura política, social e econômica presente na época era o feudalismo. Esse sistema era caracterizado por uma relação de extrema dependência entre as categorias. Os servos, aqueles a quem competiam trabalhar, eram vassalos dos senhores feudais, sejam eles nobres ou membros do clero, e estes senhores prestavam contas ao rei.
            A influência da Igreja era essencial para essa forma de dominação em estratos sociais definidos, em que o homem nasce para servir, ou para comandar. Tudo era determinado pelo divino, pelo ser absoluto. À Igreja competia o papel de ensinar a ler e escrever o latim, dada à dificuldade de comunicação e de transportes, os livros eram raros, as cópias eram manuscritas, com isso, a educação era feita nos mosteiros, nos conventos e nas escolas episcopais.
Mas o latim não era falado em Portugal entre os séculos XII e XV. Havia necessidade de vocabulários em português e latim, contudo a língua portuguesa será considerada oficial somente no reinado de Dom Dinis (1279-1325). Já o ensino será feito mais tardiamente. O fato é que o conhecimento e as tradições eram difundidos entre as grandes massas por via oral.

Figura 3 - Dom Dinis

No reinado de Afonso Henriques houve um amplo desenvolvimento da navegação costeira e comercial. Já no reinado de Dom Dinis desenvolveu-se o comércio interno e a circulação de propriedade e foi fundada a Universidade em Lisboa que depois foi transferida para Coimbra. Dinis foi também um grande trovador.  
No final do século XIV, a partir do reinado de Dom João I começam grandes transformações na estrutura social do país, as conquistas de novos territórios que culminaram na formação de um império português com a chegada às Índias e com a descoberta do Brasil.

Para aprofundar mais seu conhecimento, consulte nossas referências abaixo.

Referências:
ABDALA JÚNIOR, Benjamim. História social da literatura portuguesa. Benjamim Abdala Júnior, Maria Aparecida Paschoalin, 2ª edição. São Paulo: Ática, 1985.

Sites:



quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Ressonâncias trovadorescas na literatura e na música brasileira contemporâneas

A história da arte é feita de rupturas, reaproximações e diálogos com estéticas anteriores. Aconteceu com o Romantismo, ao se desligar da tradição árcade, por exemplo (LEITE, 2014).
O trovadorismo influenciou os séculos que o sucederam em autores como Camões e Fernando Pessoa, em seu poema Dom Dinis.

D. DINIS
Fernando Pessoa

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
o plantador de naus a haver
e ouve um silêncio múrmuro consigo.
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar jovem e puro,
busca o oceano por achar;
e a fala dos pinhais, marulho obscuro,
é o som presente desse mar futuro,
é a voz da terra ansiando pelo mar.

Manuel Rodrigues Lapa, em 1933, foi o primeiro autor a usar o termo Neotrovadorismo para designar a interrelação entre autores contemporâneos e o trovadorismo, movimento este que ocorre mais como uma releitura que como uma imitação (LEITE, 2014).
No contexto literário brasileiro, a associação mais evidente se dá com a literatura de cordel, devido à sua oralidade e musicalidade, assim como alguns dos temas abordados por ambos, como as novelas de cavalaria.
Entretanto, esse diálogo com o trovadorismo medieval não se restringe ao cordel. Escritores como Gregório de matos e sua poesia satírica, Cecília Meireles e Manoel Bandeira e compositores como Caetano Veloso, Gonzaguinha e Gilberto Gil são também associados a este movimento de reaproximação.
Destaques maiores ficam por conta das obras de Chico Buarque, tido como “moderno trovador” por Calado (2010 apud Leite, 2014), que identificou em sua obra diversas marcas da literatura medieval, inclusive separando sua obra por gêneros da poética trovadoresca: “A Rita” e “tanta saudade” foram associadas a cantigas de amor; já “Atrás da porta” e “Olhos nos olhos” relacionam-se com as cantigas de amigo.
Figura 1 - Chico Buarque

Stella Leonardos (1974 apud Leite, 2014) escreveu “Do Cancioneiro da Desajuda”, poema que usa e abusa do tema, da forma, das referências e até da linguagem da época medieval. Foi publicado na obra Amanhecência que apresenta recriações da escritora para o período trovadoresco (OLIVEIRA, 2015).
Figura 2 - Stella Leonardos


DO CANCIONEIRO DA DESAJUDA
Stella Leonardos

FLOR do ramo
flor do ramo;
ven cantiga.

                                               “Ai flores, ai flores do verde pino,
                                                     se sabedes novas do meu amigo!
                                                                              Ai Deus, e u é?”

Em que seja Dona Flor
non quero cantar d’amor.
Nen cantar de maldizer.
Sou d’agosto, vivo a gosto,
a contragosto vos amo
e o gosto meu é morrer.

                                               “Ai flores, ai flores do verde ramo,
                                                       se sabedes novas do meu amado!
                                                                              Ai Deus, e u é?”

Flor sem ramo.
Do enramado
sen cantiga.

Aqui temos uma óbvia e desejada referência ao poema “Ai flores, ai flores do verde pino”, de Dom Dinis, o rei trovador.
Leite acrescenta à lista de poetas que se influenciaram pelo trovadorismo o nome de Vinícius de Moraes e justifica, associando inicialmente seu trânsito entre a poesia e a música. Em seguida, o autor afirma que Vinícius referenciava o universo trovadoresco em temas como o amor cortês e a busca por um Deus. Contudo, este poeta já não utilizava as estruturas formais ou a linguagem trovadoresca.
Especial destaque merece o tema do amor na obra de Vinícius de Moraes. O amor-sofrimento associa-se à coita medieval, sendo algumas vezes platônico; outras, carnal. A relação entre a cantiga de amor e sua poesia pode ser exemplificada pelo poema “A mulher que passa”, que se segue.
Figura 3 - Vinícius de Moraes


A MULHER QUE PASSA
Vinícius de Moraes

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! Como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sofrimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pelos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos baços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias, quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdia?

Porque não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida?
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!
No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa,
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que boia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.

Além da nítida referência ao poema de Baudelaire, “A une passante” (LEITE, 2014), podemos notar traços trovadorescos na temática do amor-sofrimento, a presença dos elementos da natureza e no elogio à amada inatingível, com a pele alva como as cantadas pelos trovadores.

Outros autores também se envolveram com a temática, a forma ou a musicalidade trovadoresca, que permeia amplamente as influências de nossa música e nossa literatura.

REFERÊNCIAS

LEITE, J.L.M. Vinícius de Moraes: ressonâncias do trovadorismo na poesia brasileira. 2014.50f. Monografia (Licenciatura em Letras) – Faculdade de Letras, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2014. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/ccl/images/JONATHAN_LUCAS_MOREIRA_LEITE.pdf Acesso em 21 set 2016.
OLIVEIRA, V.B. Tradição e recriação trovadorescas em Amanhecência de Stella Leonardos. 2015. 107f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015. Disponível em: http://tede.biblioteca.ufpb.br:8080/handle/tede/8245 Acesso em 21 set 2016.

REFERÊNCIAS DAS FOTOS

Chico Buarque: Disponível em: http://www.romapravoce.com/chico-buarque-e-roma-exilio/ Acesso em 22 set 2016.
Dom Dinis: Disponível em: http://blogs.ua.pt/maquinadotempo7/?p=1414. Acesso em 22 set 2016.
Stella Leonardos: Disponível em: http://www.citador.pt/poemas/a/stella-leonardos. Acesso em 22 set 2016.

Vinícius de Moraes: Disponível em: http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/vinicius-de-moraes-poemas-de-amor/. Acesso em 22 set 2016.