“A
repetição de um texto por outro, de um fragmento em um texto, a colagem, a
alusão, a paródia, nunca é inocente.” (CARVALHAL, 1992 apud ALGERI, SIBIN, 2007)
A
literatura comparada nos leva à busca entre semelhanças e diferenças e ao
diálogo presente entre os textos, ainda que tenham sido escritos em épocas e
contextos diferentes.
Retomando
postagem anterior, lembramos que o Trovadorismo é o movimento literário que
teve início entre 1198(ou 1189), com a Cantiga da Ribeirinha de Paio Soares de
Taveirós e possuía elementos marcantes em sua estética e foi enriquecido por
influências árabes, francesas e alemãs, resultantes, seja por proximidade
geográfica, seja por invasões frequentes na península ibérica.
A
poesia trovadoresca se apresenta em dois gêneros essenciais: o liricoamoroso e
o satírico, que era apresentada no idioma galego-português – devido à união
então existente entre Portucal e Galizia – para uma plateia e com
acompanhamento musical, em especial de instrumentos de corda. O refrão
reforçava a presença do coro e seu caráter de transmissão oral, com
apresentações públicas – não era comum a existência de um leitor solitário.
A
separação entre música e poesia só ocorreu mais tarde. Sendo assim, ainda que o
gênero trovadoresco esteja envelhecido para o gosto do leitor moderno, continua
influenciando tanto a literatura quanto a música contemporâneas. Em cada um dos
tipos mais comuns de cantigas, consegue-se identificar elementos (sejam
técnicos ou temáticos) que remetem obras contemporâneas às cantigas medievais.
Vejamos alguns exemplos:
Cantiga de amor: o eu-lírico masculino canta o
amor idealizado e sofrido, torturante. Não há intenção de concretizá-lo, uma vez
que a “senhor” amada geralmente é casada, membro da aristocracia, inatingível,
acentuando a coita (sofrimento por amor). O amor impossível é tema recorrente
na literatura e na música. Como exemplo,
temos este fragmento da música Amor Sublime, do grupo Legião Urbana (ALGERI, SIBIN,
2007).
Eu sou apenas alguém
Ou até mesmo ninguém
Talvez alguém invisível
Que a admira a distancia
Sem a menor esperança
(...)
Você é o motivo
Do meu amanhecer
E a minha angústia
Ao anoitecer
(...)
Dono de um amor sublime
Mas culpado por querê-la
Como quem a olha na vitrine
Mas jamais poderá tê-la
(...)
Eu sei de todas as suas tristezas
E alegrias
Mas você nada sabe
(...)
Nem
sequer que eu existo.
Cantiga de amigo: o eu-lírico feminino canta o
amor real, consumado, muitas vezes tendo como final o abandono da mulher pelo
homem amado. Observe a letra da música “Onde andarás” interpretada por Joanna. Além
do amor abandonado, ele destaca elementos do ambiente e da natureza, como a
cantiga de amigo fazia.
Onde andarás nesta
tarde vazia
Tão clara e sem
fim
Enquanto o mar
bate azul em Ipanema
Em que bar, em que
cinema te esqueces de mim.
(...)
Eu sei, meu
endereço apagaste do teu coração,
(...)
Não serve pra nada
a escada, o elevador,
Já não serve pra
nada a janela
A cortina amarela,
perdi meu amor
E é por isso que
eu saio pra rua
Sem saber pra que
Na esperança
talvez de que o acaso
Por mero descaso
me leve a você.
(...)
(Caetano Veloso e
Ferreira Goulart)
Este
sofrimento feminino era escrito por trovadores homens e ainda hoje encontramos
esta inversão, como em músicas de Chico Buarque (“Atrás da Porta”), Adriana
Calcanhoto (“Devolva-me”) e Gal Costa (“Falando de Amor”).
Cantigas de
escárnio e maldizer:
apresentam o rude espírito medieval como sátira da sociedade da época. As de escárnio
faziam uma crítica encoberta, com duplo sentido, enquanto que as de maldizer
eram diretas e claras, nomeando o “homenageado”.
Um
exemplo desta interface da música contemporânea com o trovadorismo (no sentido
das músicas de duplo sentido que são uma crítica à sociedade da época) é a
música “Apesar de Você” (clique aqui para assistir ao vídeo), de Chico Buarque, composta na década de 1970 como um
crítica ao governo militar, em especial ao presidente Médici – encoberta, para
uns; clara e direta, para outros.
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a
tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
(...)
A
linguagem utilizada – muitas vezes grosseira, com termos chulos, às vezes
pornográficos em versos que traziam retratos de uma sociedade – continua sendo
empregada por autores contemporâneos, em especial em composições brasileiras
que embalam bailes funk e de gêneros
correlatos.
REFERÊNCIAS
ALGERI,
Nelvi Malokowsky, SIBIN, Elizabete Arcalá. A
poesia trovadoresca e suas relações com a literatura de cordel e a música
contemporânea. 2007. 20f. Monografia (Especialização em Letras) – Faculdade
de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Disponível em: <http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/producoes_pde/artigo_nelvi_malokowsky.pdf>Acesso
em: 25 set 2016