quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Ressonâncias trovadorescas na literatura e na música brasileira contemporâneas

A história da arte é feita de rupturas, reaproximações e diálogos com estéticas anteriores. Aconteceu com o Romantismo, ao se desligar da tradição árcade, por exemplo (LEITE, 2014).
O trovadorismo influenciou os séculos que o sucederam em autores como Camões e Fernando Pessoa, em seu poema Dom Dinis.

D. DINIS
Fernando Pessoa

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
o plantador de naus a haver
e ouve um silêncio múrmuro consigo.
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar jovem e puro,
busca o oceano por achar;
e a fala dos pinhais, marulho obscuro,
é o som presente desse mar futuro,
é a voz da terra ansiando pelo mar.

Manuel Rodrigues Lapa, em 1933, foi o primeiro autor a usar o termo Neotrovadorismo para designar a interrelação entre autores contemporâneos e o trovadorismo, movimento este que ocorre mais como uma releitura que como uma imitação (LEITE, 2014).
No contexto literário brasileiro, a associação mais evidente se dá com a literatura de cordel, devido à sua oralidade e musicalidade, assim como alguns dos temas abordados por ambos, como as novelas de cavalaria.
Entretanto, esse diálogo com o trovadorismo medieval não se restringe ao cordel. Escritores como Gregório de matos e sua poesia satírica, Cecília Meireles e Manoel Bandeira e compositores como Caetano Veloso, Gonzaguinha e Gilberto Gil são também associados a este movimento de reaproximação.
Destaques maiores ficam por conta das obras de Chico Buarque, tido como “moderno trovador” por Calado (2010 apud Leite, 2014), que identificou em sua obra diversas marcas da literatura medieval, inclusive separando sua obra por gêneros da poética trovadoresca: “A Rita” e “tanta saudade” foram associadas a cantigas de amor; já “Atrás da porta” e “Olhos nos olhos” relacionam-se com as cantigas de amigo.
Figura 1 - Chico Buarque

Stella Leonardos (1974 apud Leite, 2014) escreveu “Do Cancioneiro da Desajuda”, poema que usa e abusa do tema, da forma, das referências e até da linguagem da época medieval. Foi publicado na obra Amanhecência que apresenta recriações da escritora para o período trovadoresco (OLIVEIRA, 2015).
Figura 2 - Stella Leonardos


DO CANCIONEIRO DA DESAJUDA
Stella Leonardos

FLOR do ramo
flor do ramo;
ven cantiga.

                                               “Ai flores, ai flores do verde pino,
                                                     se sabedes novas do meu amigo!
                                                                              Ai Deus, e u é?”

Em que seja Dona Flor
non quero cantar d’amor.
Nen cantar de maldizer.
Sou d’agosto, vivo a gosto,
a contragosto vos amo
e o gosto meu é morrer.

                                               “Ai flores, ai flores do verde ramo,
                                                       se sabedes novas do meu amado!
                                                                              Ai Deus, e u é?”

Flor sem ramo.
Do enramado
sen cantiga.

Aqui temos uma óbvia e desejada referência ao poema “Ai flores, ai flores do verde pino”, de Dom Dinis, o rei trovador.
Leite acrescenta à lista de poetas que se influenciaram pelo trovadorismo o nome de Vinícius de Moraes e justifica, associando inicialmente seu trânsito entre a poesia e a música. Em seguida, o autor afirma que Vinícius referenciava o universo trovadoresco em temas como o amor cortês e a busca por um Deus. Contudo, este poeta já não utilizava as estruturas formais ou a linguagem trovadoresca.
Especial destaque merece o tema do amor na obra de Vinícius de Moraes. O amor-sofrimento associa-se à coita medieval, sendo algumas vezes platônico; outras, carnal. A relação entre a cantiga de amor e sua poesia pode ser exemplificada pelo poema “A mulher que passa”, que se segue.
Figura 3 - Vinícius de Moraes


A MULHER QUE PASSA
Vinícius de Moraes

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! Como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sofrimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pelos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos baços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias, quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdia?

Porque não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida?
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!
No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa,
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que boia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.

Além da nítida referência ao poema de Baudelaire, “A une passante” (LEITE, 2014), podemos notar traços trovadorescos na temática do amor-sofrimento, a presença dos elementos da natureza e no elogio à amada inatingível, com a pele alva como as cantadas pelos trovadores.

Outros autores também se envolveram com a temática, a forma ou a musicalidade trovadoresca, que permeia amplamente as influências de nossa música e nossa literatura.

REFERÊNCIAS

LEITE, J.L.M. Vinícius de Moraes: ressonâncias do trovadorismo na poesia brasileira. 2014.50f. Monografia (Licenciatura em Letras) – Faculdade de Letras, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2014. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/ccl/images/JONATHAN_LUCAS_MOREIRA_LEITE.pdf Acesso em 21 set 2016.
OLIVEIRA, V.B. Tradição e recriação trovadorescas em Amanhecência de Stella Leonardos. 2015. 107f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015. Disponível em: http://tede.biblioteca.ufpb.br:8080/handle/tede/8245 Acesso em 21 set 2016.

REFERÊNCIAS DAS FOTOS

Chico Buarque: Disponível em: http://www.romapravoce.com/chico-buarque-e-roma-exilio/ Acesso em 22 set 2016.
Dom Dinis: Disponível em: http://blogs.ua.pt/maquinadotempo7/?p=1414. Acesso em 22 set 2016.
Stella Leonardos: Disponível em: http://www.citador.pt/poemas/a/stella-leonardos. Acesso em 22 set 2016.

Vinícius de Moraes: Disponível em: http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/vinicius-de-moraes-poemas-de-amor/. Acesso em 22 set 2016.

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