“No princípio era a música e ela se fez poesia e habitou entre nós.” Essa
frase de Ligia Vassallo vem encantadoramente ao encontro de nosso assunto, a
cantiga trovadoresca, de uma época rica que nos legou uma literatura de
estrutura verbal acompanhada de instrumentos musicais como a viola e o alaúde.
Caravaggio. O Tocador de Alaúde, 1595.
Nada
mais confluente do que essa analogia bíblica se referindo ao primeiro capítulo
de João. Digo isso porque o advento do cristianismo é o contexto dessa poesia
que nasce numa sociedade marcada pelo dualismo e pelo conflito entre o
amor-paixão de Eros e o amor cortês que enaltece a Virgem Maria.
Rogier van der Weyden. A virgem e o filho, 1454.
Essa
doutrina cristã escolherá como alvo de suas pregações os desprestigiados: as
mulheres e os escravos. Com o desenvolvimento do aprendizado e da leitura, as
mulheres começarão a ocupar um papel importante na sociedade feudal da Idade
Média.
Houve o surgimento da cultura feminina, uma vez que as mulheres passaram a se ocupar da educação
nos conventos e nas cortes. Esse fenômeno ocorreu nas regiões em que
predominavam a língua occitânica, entre o Rio Loire e o Mar Mediterrâneo. Nesse local nasceram as cantigas provençais –
as cansós – que terão grande
influência nas cantigas de amor galego-portuguesas.
O conceito de amor floresce no
Ocidente no século XII como reação ao cristianismo e a implantação de suas
doutrinas do casamento, da castidade e do culto à Virgem Maria. Inserido nesse
conflito entre a paixão e voto do casamento por interesses políticos ou como
forma de dominação dos povos, o trovador canta esse amor cortês por uma dama inalcançável
que se torna o seu senhor, como nas relações de vassalagem da sociedade feudal.
Trata-se de um amor impossível,
porque extraconjugal, e “esses amantes estarão unidos pelas leis da cortesia: o
segredo, a paciência, a moderação, que não são exatamente sinônimos de
castidade, (...) e sim de retenção... E, sobretudo, o homem será o
servo da mulher” (ROUGEMONT,1988).
Rogier van der Weyden. Retrato de uma dama, 1460.
Para Denis de Rougemont, a poesia
europeia nasceu da poesia dos trovadores do século XII. Lígia Vassalo fala dessa
época como um renascimento, já que houve grandes transformações sociais,
econômicas e o florescimento artístico das cantigas. Além disso, como aponta Rougemont,
tivemos o nascimento de uma visão da mulher inteiramente contrária aos costumes
tradicionais e uma grande revolução psíquica.
O amor cortês exaltado não é mais
o apaixonado e consumado na realidade, mas o amor espiritualizado, uma
contemplação da dama sempre superior que segue regras de conduta, mas ao mesmo
tempo conflituoso, uma vez que pende entre o segredo e o desejo, entre o Eros e
o Ágape.
“À mulher, instrumento da perdição das almas,
corresponde Maria, símbolo da pura Luz salvadora, Mãe intacta (imaterial) de
Jesus e, ao que parece, Juíza cheia de doçura dos espíritos libertados”. (ROUGEMONT,1988)
Para saber mais sobre esse assunto, vale a rica leitura de "O amor e o ocidente" de Denis Rogemont. Veja nossas referências.
Para saber mais sobre esse assunto, vale a rica leitura de "O amor e o ocidente" de Denis Rogemont. Veja nossas referências.
Referências:
FURTADO, Fernando Fábio Fiorese.
Aulas ministradas entre os dias 29 de agosto e 20 de setembro de 2016, na Faculdade
de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora.
ROUGEMONT, Denis. O amor e o
ocidente. (Livros I e II) Tradução de Paulo Brandi e Ethel Brandi Cachapuz. Rio de janeiro: Guanabara,
1988.
VASSALO, Ligia. A Cantiga
trovadoresca. In: Revista Tempo Brasileiro 83. Rio de Janeiro: Colégio do
Brasil (ORDECC), 1985.
Sites:
http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/52.81, acesso em 21 setembro de 2016
http://veja.abril.com.br/galeria-fotos/as-obras-de-caravaggio, acesso em 21 setembro de 2016
http://www.nga.gov/content/ngaweb/Collection/art-object-page.51.html,
acesso em 21 setembro de 2016
https://www.mfah.org/art/detail/46236,
acesso em 21 setembro de 2016
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