domingo, 25 de setembro de 2016

Intertextualidade entre o trovadorismo galaico-português e a literatura brasileira contemporânea

“A repetição de um texto por outro, de um fragmento em um texto, a colagem, a alusão, a paródia, nunca é inocente.” (CARVALHAL, 1992 apud ALGERI, SIBIN, 2007)

A literatura comparada nos leva à busca entre semelhanças e diferenças e ao diálogo presente entre os textos, ainda que tenham sido escritos em épocas e contextos diferentes.

Retomando postagem anterior, lembramos que o Trovadorismo é o movimento literário que teve início entre 1198(ou 1189), com a Cantiga da Ribeirinha de Paio Soares de Taveirós e possuía elementos marcantes em sua estética e foi enriquecido por influências árabes, francesas e alemãs, resultantes, seja por proximidade geográfica, seja por invasões frequentes na península ibérica.

A poesia trovadoresca se apresenta em dois gêneros essenciais: o liricoamoroso e o satírico, que era apresentada no idioma galego-português – devido à união então existente entre Portucal e Galizia – para uma plateia e com acompanhamento musical, em especial de instrumentos de corda. O refrão reforçava a presença do coro e seu caráter de transmissão oral, com apresentações públicas – não era comum a existência de um leitor solitário.

A separação entre música e poesia só ocorreu mais tarde. Sendo assim, ainda que o gênero trovadoresco esteja envelhecido para o gosto do leitor moderno, continua influenciando tanto a literatura quanto a música contemporâneas. Em cada um dos tipos mais comuns de cantigas, consegue-se identificar elementos (sejam técnicos ou temáticos) que remetem obras contemporâneas às cantigas medievais. Vejamos alguns exemplos:

Cantiga de amor: o eu-lírico masculino canta o amor idealizado e sofrido, torturante. Não há intenção de concretizá-lo, uma vez que a “senhor” amada geralmente é casada, membro da aristocracia, inatingível, acentuando a coita (sofrimento por amor). O amor impossível é tema recorrente na literatura e na música.  Como exemplo, temos este fragmento da música Amor Sublime, do grupo Legião Urbana (ALGERI, SIBIN, 2007).

Eu sou apenas alguém
Ou até mesmo ninguém
Talvez alguém invisível
Que a admira a distancia
Sem a menor esperança
(...)
Você é o motivo
Do meu amanhecer
E a minha angústia
Ao anoitecer
(...)
Dono de um amor sublime
Mas culpado por querê-la
Como quem a olha na vitrine
Mas jamais poderá tê-la
(...)
Eu sei de todas as suas tristezas
E alegrias
Mas você nada sabe
(...)
Nem sequer que eu existo.

Cantiga de amigo: o eu-lírico feminino canta o amor real, consumado, muitas vezes tendo como final o abandono da mulher pelo homem amado. Observe a letra da música “Onde andarás” interpretada por Joanna. Além do amor abandonado, ele destaca elementos do ambiente e da natureza, como a cantiga de amigo fazia.

Onde andarás nesta tarde vazia
Tão clara e sem fim
Enquanto o mar bate azul em Ipanema
Em que bar, em que cinema te esqueces de mim.
(...)
Eu sei, meu endereço apagaste do teu coração,
(...)
Não serve pra nada a escada, o elevador,
Já não serve pra nada a janela
A cortina amarela, perdi meu amor
E é por isso que eu saio pra rua
Sem saber pra que
Na esperança talvez de que o acaso
Por mero descaso me leve a você.
(...)
(Caetano Veloso e Ferreira Goulart)

Este sofrimento feminino era escrito por trovadores homens e ainda hoje encontramos esta inversão, como em músicas de Chico Buarque (“Atrás da Porta”), Adriana Calcanhoto (“Devolva-me”) e Gal Costa (“Falando de Amor”).

Cantigas de escárnio e maldizer: apresentam o rude espírito medieval como sátira da sociedade da época. As de escárnio faziam uma crítica encoberta, com duplo sentido, enquanto que as de maldizer eram diretas e claras, nomeando o “homenageado”.
Um exemplo desta interface da música contemporânea com o trovadorismo (no sentido das músicas de duplo sentido que são uma crítica à sociedade da época) é a música “Apesar de Você” (clique aqui para assistir ao vídeo), de Chico Buarque, composta na década de 1970 como um crítica ao governo militar, em especial ao presidente Médici – encoberta, para uns; clara e direta, para outros.

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
(...)

A linguagem utilizada – muitas vezes grosseira, com termos chulos, às vezes pornográficos em versos que traziam retratos de uma sociedade – continua sendo empregada por autores contemporâneos, em especial em composições brasileiras que embalam bailes funk e de gêneros correlatos.

REFERÊNCIAS


ALGERI, Nelvi Malokowsky, SIBIN, Elizabete Arcalá. A poesia trovadoresca e suas relações com a literatura de cordel e a música contemporânea. 2007. 20f. Monografia (Especialização em Letras) – Faculdade de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Disponível em: <http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/producoes_pde/artigo_nelvi_malokowsky.pdf>Acesso em: 25 set 2016

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