domingo, 25 de setembro de 2016

Cantigas satíricas como uma reação às imposições morais da Igreja Católica

No século XIII veria-se várias ações por parte da Igreja Católica para reprimir as práticas ditas pagãs na Península Ibérica. As tentativas de se apagar as festas e rituais dos povos desses locais, festas que eram muitas vezes repletas de erotismo, foram consideravelmente bem sucedidas. Contudo, deixaram reflexos nas artes e cantigas dos trovadores. Esses reflexos podem ser vistos tanto nas cantigas de amigo que frequentemente se opõem ao “amor puro” e “anticarnal” imposto pela igreja, como em algumas sátiras feitas pelos jograis.
As três cantigas que separamos abaixo mostram com bastante evidência uma reação a esses atos purificadores da igreja.


Infelizemente muita poucas canções trovadorescas medievais salvaram-se com suas melodias. Mas, por outro lado, houve várias regravações modernas de cantigas trovadorescas. As letras das músicas a seguir são cantigas de sátira com suas melodias refeitas por Xurxo Romaní. Elas foram envoltas por arranjos de guitarra e um tom de rock moderno.

Tente acompanha-lás com a letra logo abaixo do vídeo.

Abadessa oí dizer - Xurxo Romaní



Abadessa, oí dizer
que érades mui sabedor
de tod'o bem; e, por amor
de Deus, querede-vos doer
de mim, que ogano casei,
que bem vos juro que nom sei
mais que um asno de foder.

Ca me fazem en sabedor
de vós que havedes bom sem
de foder e de tod'o bem;
ensinade-me mais, senhor,
como foda, ca o nom sei,
nem padre nem madre nom hei
que m'ensin'e fic'i pastor.

E se eu ensinado vou
de vós, senhor, deste mester
de foder e foder souber
per vós, que me Deus aparou,
cada que per foder direi
Pater Noster e enmentarei
a alma de quem m'ensinou.

E per i podedes gaar,
mia senhor, o reino de Deus,
per ensinar os pobres seus
mais ca por outro jajũar;
e per ensinar a molher
coitada, que a vós veer,
senhor, que nom souber ambrar.

Essa é uma cantiga escrita por Afonso Anes do Cotom, na qual o trovador se diz órfão e inexperiente. Ele roga a uma abadessa, muito sábia no assunto, que ensine as práticas amorosas, para que, assim, ajudando os mais humildes, ela possa ganhar os reinos dos céus.

A un frade dizen escarallado - Xurxo Romaní


A um frade dizem escaralhado,
e faz pecado quem lho vai dizer,
ca, pois el sabe arreitar de foder,
cuid'eu que gaj'é de piss'arreitado;
e pois emprenha estas com que jaz
e faze filhos e filhas assaz,
ante lhe dig'eu bem encaralhado.

Escaralhado nunca eu diria,
mais que traje ante caralho arreite,
ao que tantas molheres de leite
tem, ca lhe parirom três em um dia,
e outras muitas prenhadas que tem;
e atal frade cuid'eu que mui bem
encaralhado per esto seria.

Escaralhado nom pode seer
o que tantas filhas fez em Marinha
e que tem ora outra pastorinha
prenhe, que ora quer encaecer,
e outras muitas molheres que fode;
e atal frade bem cuid'eu que pode
encaralhado per esto seer.

Uma sátira, escrita pelo trovador Fernand'Esquio, sobre um frade que dizem ser impotente (escaralhado), porém engravida todas as mulheres ao redor e faz isso a tal ponto que três dessas mulheres tiveram seus filhos na mesma data. A letra, como é possível notar, é escrita com termos bastantes expressivos.   


A vós dona abadessa - Xurxo Romaní


A vós, Dona abadessa,
de mim, Dom Fernand'Esquio,
estas doas vos envio,
porque sei que sodes essa
dona que as merecedes:
quatro caralhos franceses
e dous aa prioressa.

Pois sodes amiga minha
nom quer'a custa catar,
quero-vos já esto dar
ca nom tenho al tam aginha:
quatro caralhos de mesa
que me deu ũa burguesa,
dous e dous ena bainha.

Mui bem vos semelharám
ca sequer levam cordões
de senhos pares de colhões;
agora vo-los darám:
quatro caralhos asnaes,
enmanguados em coraes
com que calhedes a mam.

Essa também é uma cantiga escrita, como assinado no segundo verso, por Fernand'Esquio. De maneira bem direta e com termos bem crus, ele diz que envia, prestativamente, um objeto para consolar a rotina penitente de uma abadessa não identificada.



Os esforços da igreja para suprimir os amores carnais e o erotismo não foram suficientes, pois o mesmo conteúdo visto nessas cantigas de sátiras ainda pode ser observado em poemas e músicas de séculos posteriores e, inclusive, a essência ainda pode ser encontrada em algumas das músicas da atualidade. 


Referências:


FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Aulas ministradas entre os dias 29 de agosto e 20 de setembro de 2016, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora.

SOARES, Martim; TAVEIRÓS, Paio Soares de. Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FSCH/NOVA. Disponível em <http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=115&pv=sim> Acesso em 24 set 2016.

SARAIVA, Antônio José; Lopes, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto, 1987. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário